quarta-feira, 29 de agosto de 2012


O aborto nas eleições americanas e na legislação portuguesa

Por Jorge Nogueira Rebolla
Da Folha
João Pereira Coutinho
Aborto. A minha semana foi dominada por ele. Nos Estados Unidos, o republicano Todd Akin fez estragos na campanha de Mitt Romney com uma afirmação miserável sobre o tema: quando há violação, o corpo da mulher tem maneiras de resolver isso, rejeitando a gravidez.
A miséria da frase não está no delírio acientífico do homem, nem sequer na sua recusa do aborto em casos de violação --uma posição tradicionalista, sim, que é possível entender (não por mim) e até respeitar (idem).
A verdadeira miséria está na defesa explícita de que há violações e violações. Se a violação é verdadeira, o corpo da mulher é uma espécie de nave espacial que se desvia dos meteoritos, impedindo que o espermatozoide faça a sua aterragem triunfal em solo ovular.
Se, pelo contrário, a violação é ambígua, ou "amigável", como sacrificar a vida de um inocente? Sobretudo quando esse inocente é o produto de uma violação-que-não-é-bem-uma-violação?
Já escrevi nesta Folha. Repito: sou contra a liberalização do aborto, exceto quando está em causa a saúde física e psíquica da mãe.
E imagino que uma mulher violada --a sério ou a brincar-- não fica propriamente no seu melhor estado anímico. As palavras de Todd Akin são, por isso, duplamente aberrantes.
Mas o aborto, e a minha semana a pensar no assunto, não veio dos Estados Unidos. Veio de Portugal.
Na imprensa lusitana, encontro notícia séria que merece reflexão séria: um pesquisador português, Jorge Martins Ribeiro, escreveu um estudo universitário sobre a paternidade.
Melhor: defendendo a possibilidade de um homem não reconhecer a paternidade de um filho nascido contra a sua vontade.
O pesquisador português baseia-se na mais pura igualdade entre gêneros. E invoca a liberalização do aborto no país (desde 2007) em socorro das suas teses: se, em Portugal, a mulher pode decidir abortar até as dez semanas de gestação, independentemente da posição do homem sobre o assunto, por que motivo o homem não pode recusar a paternidade de uma criança?
O raciocínio de Martins Ribeiro é exemplar --e exemplar porque parte da mesma noção de "autonomia" que está no centro das discussões progressistas sobre o aborto.
É a mulher grávida quem decide o que fazer com a criança. Sempre. A opinião do homem; os seus interesses; o desejo (ou não) de ser pai --tudo isso tem importância, digamos, conjugal ou sentimental.
Mas nada disso determina o fim do processo. Porque a "autonomia" da mulher é sempre soberana.
Nenhum homem pode obrigar uma mulher a abortar. No esquema geral das coisas, o homem não passa de um doador de esperma que, depois do serviço, é atirado para as bordas do prato, assistindo a um filme onde ele será apenas ator coadjuvante.
Como? Perfilhando (obrigatoriamente) a criança e sustentando-a, caso a mãe decida tê-la.
O pesquisador Jorge Martins Ribeiro, com impressionante sensibilidade paritária, inverte as premissas tradicionais do debate e conclui: se um homem não pode obrigar a mulher a abortar, não pode também ser obrigado pela mulher a perfilhar uma criança que ele não desejou.
E mais: nem a autoridade do Estado pode invadir essa esfera de "autonomia" (masculina). O Estado não pode determinar que uma mulher aborte uma criança.
Como pode desencadear uma averiguação oficiosa de paternidade? Se o pai não quer ser pai, o filho será, literalmente, filho da mãe.
Claro que, no meio do debate, algumas consciências progressistas acabarão por apelar para "os superiores interesses da criança".
Curioso: quando é para abortar, não há "superiores interesses da criança"; quando o homem ameaça fazer as malas, a criança passa a ter "superiores interesses".
Nada disso perturba o raciocínio do nosso pesquisador. "Superiores interesses da criança"?
Diz ele: um sistema que já acomoda o aborto livre até as dez semanas pode perfeitamente conviver com filhos sem atribuição da filiação paterna.
Eis, no fundo, a beleza da "autonomia" progressista: todos sabemos como ela começa; ninguém sabe como ela acaba.
João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do "Correio da Manhã", o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve às terças na versão impressa de "Ilustrada" e a cada duas semanas, às segundas, no site.

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